O bibliotecário mentiu. As estátuas nada tinham a dizer. Esperei, escutei, observei, falei sozinho. Em troca, apenas a eloquência comum a qualquer bloco de mármore ensinado a fingir formas mais curvas. O vento empoeirado soprava a partir das Montanhas de Ferro, cobrindo a resposta que eu sabia estar presente em algum ponto do jardim. Inútil entrar no velho casarão. Era óbvio que as letras, palavras, frases e páginas estavam aqui fora. Impressas a esmo nos galhos e sebes, copidescadas nos pedestais, acentuadas nas ranhuras do piso de pedras, sublinhadas pelos últimos raios de sol e, em breve, concluídas pelo breu.
Os corredores de concreto armado pareciam se entrelaçar ao infinito. Horas e horas se passaram e sempre havia algo novo a ser explorado: um canto ainda não visto, uma reentrância decorada de maneira estranha, salões enfeitados na penumbra. Subi os vários lances de escadas, olhando por cada nova janela ou sacada. Nessas ocasiões, o horizonte branco se espraiava por quilômetros sem fim, às vezes parecendo ir além do próprio Sol. Os sons dos meus passos ecoavam pelas paredes e, com o passar das horas, aprendi a conversar com eles.
Tentei ligar e usar todos os instrumentos e aparelhos que encontrei. Sem resultado. Nunca recebi resposta e nem mesmo vislumbrei sinais de que ainda havia mais alguém. Mas tinha de haver. Claro. Vi reprises de velhos filmes, telejornais, videoclips. Velhos desfiles de moda pontuavam as décadas passadas, que agora se impunham cronologicamente apenas por adivinhação.
Sei que ainda há muito a descobrir por aqui. A organização de vários dos cômodos parece desafiar abertamente a lógica das plantas da estrutura, que achei por acaso em um velho arquivo. Prefiro pensar que o papel esteja errado, não o concreto. Mas mudei de idéia quando percebi que os erros nunca eram os mesmos. Na manhã seguinte, o corredor da noite de ontem apontava para salas que eu só veria amanhã.
Continuei caminhando, observando, testando. Esperando que de alguma forma eu consiga compreender esta estrutura, pisar em cada uma de suas salas, vislumbrar cada uma de suas janelas e mirantes. Quanto mais conheço, mais percebo que a extensão total é ainda maior do que imaginei naquele dia em que acordei aqui e liguei as luzes do complexo. Naquele dia, há 45 anos.
O céu claro escondia duas coisas: a escuridão que permearia nossa trajetória pelo espaço e a impossibilidade de permanência na Terra. Havíamos recolhido tudo? Era estranho pensar dessa forma, como quem tranca a casa e se prepara para uma viagem de fim de semana. Tudo estava aqui? Todos os livros de Borges? Todos os álbuns da música pop? Os filmes de Fellini? Os quadros de Hopper? Os originais de Moebius? Espalhados por diversos cofres-galeria em cada uma das 500 naves-berço, cada uma dessas coleções moldaria a forma de ver e pensar e cheirar e sentir de centenas de novas civilizações humanas. Imagino rebeldes de 14 anos da civilização 44, cansado de sua dieta de Stones e Monet, sonhando com as promessas oníricas de um Miró, um Sex Pistols, coisas a anos-luz de distância. E ainda assim tão próximas, para quem souber como.
Caminho agora pelo deck de metal e olho para o alto. Em algum ponto invisível lá em cima está minha nova casa. Abraço você e entramos no saguão de embarque, nunca prontos para o salto definitivo. Nossas coisas em poucas malas e mochilas, nossos objetos de arte espalhados pelas futuras civilizações. Sentirei falta de Bioy Casares e do Primal Scream. Adeus, caros amigos. Farewell, fair weather friends.
O salto começa e só tenho tempo de apertar forte o seu ombro e olhar uma última vez para as Yosemites, para o Atlântico, para as nuvens, para o ponto azul que flutua no negrume.
A luz do céu nublado me confundia a ponto de me fazer esquecer o quanto ela estava atrasada. Duas horas? Três? Certamente quatro não seria possível. Mas o peão e a torre que se desafiavam em silêncio, sobras das pelejas solitárias da tarde, entregavam a plenitude do atraso. O tempo imprime novas faces a objetos familiares; a tijela se torna enorme, com diferenças permeando todas as suas curvas antes sequer familiares, mas ignoradas. Os quadrados pretos e brancos do tabuleiro acondicionam em seus micro-mundos o tique e o taque do relógio do corredor, que se alternam sobre as peças de marfim. E veja as páginas lidas. Malraux estava no início essa manhã, agora já me aproximo do meio e nem mesmo assim me revolto contra meu destino: espero a chegada dela, com a mesma sobriedade de fachada tão elogiada e criticada pelos que (não) me conhecem.
Divido os olhos entre as páginas amarelas, as peças e quadrados do tabuleiro, o brilho da luz cada vez mais fraca sobre os objetos e, fingindo escutar a voz dela, olho pela janela e me refugio em uma realidade de âmbar.
O aquecedor sussurra tons graves à minha direita, enquanto a esquerda se ocupa com a porta. Ela entrará? Depois de ontem, espero que sim. Os livros, retratos, canetas, objetos, tudo aponta para realidades que desconheço, para a infinitude que bóia e transborda do interior de todas as coisas pequenas; todas as possibilidades que só se permitem conhecer quando trilhadas. A luz que vem da janela derrama ultravioleta sobre as minhas costas. Ou será neon?
Dúvida que só o relógio pode responder, mas está parado. Parado em doze possibilidades, todas cortadas ao meio por conjuntos raiados ao quase infinito. Minha mão alcança um livro a esmo na estante à minha frente e, logo na página 5, na 23ª linha, lá está a resposta: a memória me dá um soco. Não, espero que ela não venha. Não depois de ontem. Meu olhar se perde no papel de parede verde ainda mais esverdeado pelo tempo e vaga até o outro lado.
O suor lubrifica o volante da Maseratti, enquanto as luzes e neons se borram em manchas de Rorschach warp speed. Monet Mach-7, o impressionismo se tivesse sido criado por Marinetti. Agora acredito em fantasmas. São os guardas de trânsito, as velhas com pacotes, os senhores de terno, as mulheres fazendo jogging e todos os outros que passam como poltergeists pelas janelas laterais – visão insulfilm do purgatório. Meu pé direito pisa com mais força, apesar da câimbra. Os dois lados do meu cérebro se hiperativam, concentração e ecstasy da velocidade. E não, você ainda não entendeu. O que me move tão rapidamente para a frente não é a competição, tampouco um instinto sádico. Também errou se pensou em amor pela “adrenalina” e termos igualmente cafonas. O combustível da minha Maseratti é a dúvida; a indefinição sobre o que virá primeiro: o choque ou o orgasmo.
Está chovendo. Eu caminho despreocupado por um mundo criado em 3D com a intenção de simular uma realidade habitada por gangsters. Entro em uma mansão abandonada, em uma vizinhança tomada por mafiosos italianos. Paro em um terraço com vista para a praia e, para minha surpresa, a chuva parou e um arco-íris se forma no horizonte. As surpresas e maravilhas que acontecem durante um game acontecem comigo? Quem sou eu? Apenas esse construto de carne e ossos que mais cedo ou mais tarde estarão comidos por vermes? Ou sou tudo o que faço e presencio, mesmo que em um mundo que “não existe”? Eu realmente vi esse arco-íris? A realidade em 3D é mais ou menos real que a nossa “realidade”?
Posêidon, Iemanjá e as ninfas da água são obrigados a reinventar suas funções na sociedade industrial. Todo rio leva a algum lugar, mas onde nossa miséria desembocará? As artérias do mundo são como as veias do viciado em heroína: opiáceas, melífluas, veículo para dejetos e todas, todas as nossas merdas. Até quando os espíritos gostarão de trabalhar de bom grado como garis? A guerra da água está prestes a começar. Reserve seus copos.
Cena do anime Ghost in the Shell, de Mamoru Oshii.
Ande pela cidade a dèrive e sinta os neons. Eles querem falar com você. A palavra “Bar” com o “R” apagado é uma presença de Ba, deus egípcio da fertilidade. Uma fachada de cinema com algumas letras faltando pode ser uma dica de que ali está Cin-an-ev, herói lobo dos índios Ute.
Os deuses não morrem, mas se tatuam no inconsciente dos nossos neons. A cidade é um hardware e cada letreiro, grafite ou fachada luminosa é o software que nos permite interfacear com nossas alturas. Leia com atenção: o alfabeto ancestral está codificado ali.
Fique em silêncio à noite e escute. A cidade quer trepar com você.
Cena do anime Ghost in the Shell, de Mamoru Oshii.